Travessia

Quem volta, depois de imigrar, tem sempre os pés em duas canoas: o país natal pouco exato e a cultura que deixou menos exótica. Entre frustrado por impreciso fracasso e envaidecido por relativo sucesso, o retornado projeta. A sua angústia não tem fim. Regressa diferente, modificado, aculturado, desadaptado, capturado por outras referências. Torna estrangeiro. Infinito. Travessia.… Leia mais Travessia

As Festas Populares

Depois de dois anos e um livro, as festas populares estão de volta. Em Lisboa, a melhor época, longos dias, noites de verão, os arraiais em tantos becos, em quantos largos, as ruas assim de gente, é quando a cidade cheira ao pescado. As sardinhas, ano após ano, sempre chegaram; senão nos arraiais, nos restaurantes, às vezes nalguma esplanada com a grelha à calçada onde deixei curar a minha nostalgia. Neste ano eu tenho tudo: os amigos e a cidade inteira para mim. … Leia mais As Festas Populares

Um encontro

— Senhor, uma moedinha, se faz favor!
— Não tenho trocados — minha resposta habitual para esse tipo de rogativa.
— Então dê-me uma sande. Tenho fome.
Fiz um sinal… Na verdade, só olhei para o garçom que, encostado ao batente da porta, acompanhava a cena. Um leve movimento com a cabeça foi o suficiente para ele vir:
— Se faz o favor, uma sandes para esse senhor.
— E um sumo também, pode ser? — seguiu o pedinte.
— E um sumo também. Obrigado — disse eu.
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Aqui na Rua

A rua do Olival é a minha rua. Estou aqui desde 2014; senão morando a todo esse tempo, pelo menos indo e vindo nesse caminho desde então. Nunca havia visto abertas aquelas portadas nos números 65 e 67; também nunca havia visto gente a entrar ou a sair por ali. Nunca uma luz acesa. Nunca abertas as janelas para a rua ou sobre a escada. A casa parece abandonada desde sempre: está desleixada, desbotada e esquecida. Minha surpresa foi descobrir hoje, somente hoje, que é habitada.… Leia mais Aqui na Rua

Felipe

Hoje, no dia em que escrevo, 15 de setembro, meu velho pai faria 118 anos. Hoje, venturoso dia, nasceu o Felipe, bisneto dele, meu sobrinho-neto. Não é o primeiro. É aquele que, se depender do empenho dos pais, virá viver para cá, em Lisboa, ao pé de nós. Passei o dia de ontem, de hoje e sei que muitos amanhãs também, querendo estar em São Paulo, como, há quase 40 anos, corri quilômetros, em Juiz de Fora, para ser o primeiro a ver a mãe dele, quando ela nasceu. Na caminhada que fiz hoje, não corri, vagueei pela margem do Tejo, sem pensar em nada senão no dia em que for ele, Felipe, um desses miúdos que vejo por aqui, numa adorável bata, andando de bicicleta, subindo e descendo o rio num caixote à vela, brincando de pegar onda nas águas geladas do Atlântico Norte, sob a luz de Lisboa. Para ele, tirei uma foto do rio e da ponte no ocaso do dia em que ele nasceu. Acho que o Felipe será feliz em Lisboa.… Leia mais Felipe

Missa em São Domingos

Em mais de sete séculos de história, a igreja está onde sempre esteve. Mas, sim, foi muitas e muitas vezes modificada: remodelações, ampliações e reconstruções; seja em razão de régias vontades, das cheias frequentes nas primeiras centúrias da paróquia, dos terremotos – sobretudo os de 1531 e 1755 que exigiram completa reconstrução, mas obras também foram feitas após os abalos de 1704 e 1724 – e dos incêndios. Em 13 de agosto de 1959, o último grande desastre, terrível incêndio, só restaram paredes e piso e, quase intactos, fachada, sacristia e claustro. Em 1994, a igreja foi reaberta aos fiéis, é esta que eu contemplo agora.… Leia mais Missa em São Domingos

Monsanto

E eu, de tudo isso ignorante, desde 2017 vivendo em Lisboa, somente há uma semana fui ao Monsanto. Cascão, Iêda e eu. Todo o sábado em exploração, 14 km a pé a arranhar o monte: de Alcântara ao Campolide, pelo Parque do Alvito, Anfiteatro Keil do Amaral, Moinho do Penedo, Forte do Monsanto, Parque do Alto da Serafina, Parque do Calhau e Miradouro das Três Cruzes. Encantado, prometo, agora, muitas mais idas à serra neste verão. Vou conhecer cada canto. … Leia mais Monsanto

Lisboa, tu és só para nós

Percebe que sem o reflexo das águas do Tejo, sem o brilho das calçadas portuguesas, sem os fantasmas da história no casario antigo, nas lojas tradicionais e nas pastelarias, sem a estética decadente dos bares, dos restaurantes, das tascas e dos velhos bairros, sem a animação espontânea das feiras, das festas populares e de todas as noites, sem o autêntico fado, sem a simpatia e, quantas vezes, o mau humor do lisboeta, a cidade perde o que faz dela excepcional? … Leia mais Lisboa, tu és só para nós

Volto às sacadas

Nesta semana, o governo abrandou as medidas de confinamento. É assim um pouco por toda a Europa. Em Portugal, desde segunda- feira, suspenso o Estado de Emergência. A flexibilização da quarentena (e observe que o termo é “flexibilização” e não “encerramento”) só foi possível porque, depois de sessenta dias com aproximadamente 70% da população guardada em casa, o número de contágio desmoronou. … Leia mais Volto às sacadas