Pimenta nos olhos dos outros…

Ri muito quando vi, num programa de entrevista, num desses disponíveis no Youtube, a atriz Ingrid Guimarães, distraída confessa, contar como se preparou para ver, à grande, o espetáculo Escenas de la vida conyugal, no Gran Teatro Nacional, estrelada pelo argentino Ricardo Darín, de quem ela é fã (e eu também). Contou que viu o anúncio na internet e, por impulso, decidiu ir. Acertou com o marido, negociou o final de semana com a produção do programa que fazia na tevê, entrou no site do teatro e comprou dois lugares na fila A – ingressos caríssimos –; depois, num site de viagens, comprou as passagens para Buenos Aires, dela e do marido. Porque ia assistir à peça com o magistral Darin, e, ainda faltasse uma semana, usou o tempo disponível para exibir-se aos colegas atores, e a ensaiar com o marido algumas palavras em espanhol, para quando fosse falar com seu ídolo no camarim. Diria que é atriz de teatro e cinema no Brasil, que é grande admiradora do trabalho dele, essas coisas, e, ao final, pediria para sacar una foto con él, como convém a qualquer tiete.

No dia da peça, foi com o marido almoçar. Estava tão feliz que bebeu um pouco mais e, chegada a hora, ainda alegrinha, entrou no táxi que o mensageiro chamou com um apito. Lá foram eles para el Gran Teatro Nacional, por favor. O carro arrancou, mas não ganhou velocidade. Hesitante, o condutor perguntou novamente o destino. “Gran Teatro Nacional”, ratificou o marido. O motorista pensou, demorou um pouco para montar na cabeça o percurso, até que finalmente acelerou decidido sobre o melhor caminho. O táxi já ia distante quando ela e o marido perceberam que desceram às portas do Teatro Nacional Cervantes, que a peça em cartaz era outra, e que o Darin não estava no elenco. Por fim, a dura realidade: o Gran Teatro Nacional fica em Lima, no Peru. Não existe um Gran Teatro Nacional em Buenos Aires, Argentina. De volta ao Rio, ela teve que suportar o deboche dos colegas por mais de seis meses.

Ainda achava graça dessa história, quando recebi, num grupo de Whatsapp, um link do El País com a entrevista de William Kentridge. Ao final, a informação de que o artista estava em Madrid para a abertura da sua exposição no Reina Sofia, aberta ao público até o dia 19 de março. Aqui tão pertinho… Imperdível.

Decisão tomada, compramos as passagens, ida de avião e regresso para Lisboa de ônibus, durante o dia. São oito horas de viagem, oportunidade para fazer a rota por terra, passar dentro de algumas cidades, reduzir nossa pegada ecológica e apreciar a paisagem. Depois das passagens, o apartamento reservado pela Airbnb. Tudo muito bem organizado, era só esperar o dia e viajar. Não víamos a hora.

Três noites em Madrid. Não olhei mais nada. Nem fiz roteiros. Já estivemos outras vezes na cidade e há sempre o que ver e fazer por lá. Não preciso gastar tempo preparando uma programação. Por alto, pensei, um dia para o Reina Sofia, outro para o Museu do Prado, o terceiro, talvez, para o Museu Thyssen-Bornemisza, que não conhecemos, ou outra programação qualquer. O resto do tempo para andar a esmo, sem rumo certo, ver gente passar, comer bem; quer coisa melhor?

Duas semanas antes da viagem, a primeira surpresa. As passagens de ida, num voo lowcost pela Easyjet, que nos custaram 46€ – uma pechincha –, foram compradas erradas. Ao invés de Lisboa-Madrid, Madrid-Lisboa. Remarcar não vale a pena, cobram 116€. Absurdo! Paciência. Não será por isso que vamos perder a exposição do Kentridge. Deixamos os 46€ como doação para a empresa e optamos por ir de ônibus. Compramos as passagens para o horário noturno. Em vez dos mesmos 20 euros da volta, custou-nos 30. A noite é mais caro, ficamos a saber.

Pois é, mas aí o COVID-19 chegou à Europa. Pode ser um empecilho. No norte da Itália fecharam cidades e museus. Em Paris, o Louvre está fechado. Em Madrid já são 49 os infectados. Será que os museus vão permanecer abertos? Melhor confirmar. Não encontrei no site informação sobre o fechamento do Reina Sofia. Também não vi informação sobre a exposição do Kentridge. Então a segunda surpresa: de volta à entrevista do El País, vejo que é uma edição de novembro de 2017, e que a exposição foi até 19 de março de 2018. Há dois anos!

Tenho passagens compradas, estadia paga, nenhum motivo especial para ir a Madrid e, em tempos de Coronavírus, uma boa razão para ficar quietinho em casa. E já não vejo graça nessas histórias de gente distraída.

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