Desencontro

Sinto-me um pouco como quando, após o jantar, sentávamos, Tia Isaura e eu, num café na Parede, e punha-nos a fazer filmes das vidas dos outros. Não é quadrilhice, não me entenda mal. Não sou dado a fofocas. É que, para preencher algumas lacunas dessa história, um pouco de imaginação vai ser necessário.

Há uma versão oficial – ainda que não completamente esclarecida – para O Mistério da Boca do Inferno, como ficaram conhecidos os acontecimentos que cercaram o encontro entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley, e o suicídio simbólico deste em Cascais, no final de setembro de 1930. Que não houve suicídio foi sabido três semanas depois de os jornais noticiarem a morte do mestre ocultista, quando Crowley compareceu ao vernissage da própria exposição, numa galeria em Berlim.

Talvez eu consiga desenhar o cenário em que tudo aconteceu e contar essa versão sem me perder demais em detalhes. Não vai ser fácil. Tenha paciência.

Aleister Crowley era um homem famoso, ao final da década de 20 do século passado. Vivia entre Londres, Paris e Berlim e, apesar da má reputação, mantinha relação de amizade com figuras notáveis, como Albert Einstein, Rudolf Steiner e Aldous Huxley. Aos 54 anos, vivendo um conturbado fim de casamento e passando por restrições financeiras, lançou, em 29, os dois primeiros volumes de sua autobiografia. Toda controvérsia em torno da filosofia que criou, das práticas ocultistas, da magia e do vasto escândalo que o rodeava, impulsionaram as vendas; o homem mais cruel da terra, como foi alcunhado pela imprensa, era uma figura midiática que atraía a curiosidade de toda a gente.

Em contraste, Fernando Pessoa, aos 42, era um tímido, enigmático e discreto poeta, ensaísta, tradutor e astrólogo português. Sem projeção internacional e, mesmo em Portugal, sua influência restringia-se ao universo das artes e literatura, onde cultivava amizade com gente influente da cultura local, jornalistas e empresários. Erudito, insaciável leitor e místico, ganhava a vida fazendo traduções do inglês e do francês para empresas portuguesas. Traduziu também poemas esotéricos e obras de Madame Blavatsky e Annie Besant, para a Sociedade Teosófica de Portugal.

A década de 20, até o crash da bolsa de Nova York, foi marcada pela euforia, o jazz, a liberdade e o escapismo pós-Primeira Guerra. A boemia e a transgressão marcaram aqueles anos loucos: Paris era o centro do universo; Josephine Baker, Coco Chanel, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Gertrude Stein, T. S. Eliot, entre tantos intelectuais e criadores, escolheram a capital francesa para viver e trabalhar; Berlim, capital da República de Weimar, vivia enorme efervescência intelectual e artística; e Londres, a maior metrópole do planeta, estava em linha com as transformações sociais da época. Ainda que os artistas e intelectuais portugueses estivessem atentos e entusiasmados com as mudanças que aquele movimento prometia, Lisboa era provinciana, conservadora e culturalmente subdesenvolvida.

É nessa cidade que Aleister Crowley e a namorada, Hanni Jaeger, a deusa da fertilidade e do ímpeto sexual feminino, com 19 anos, a Mulher Escarlate da vez, vieram aportar no dia 2 de setembro de 1930. Ela, atriz, orientalista e, dizem até, adepta da filosofia tântrica, cresceu em Berlim e trazia indeléveis na alma a liberdade e a irreverência.

A vinda do casal para Lisboa foi uma surpresa mesmo para Fernando Pessoa; mas a viagem se deu por impulso dele. Atento ao que passava no mundo, assinou e recebeu o primeiro volume de As Confissões de Aleister Crowley. Logo observou, pelos fatos e datas narrados, um erro no mapa astral do autor, uma diferença no horário de seu nascimento. Em dezembro de 1929, escreveu para a editora tecendo comentários sobre a obra e pedindo que comunicassem ao sr. Crowley que o seu horóscopo estava errado, devendo ele ter nascido um pouco antes da hora que supunha.

A Editora Mandrake estava em dificuldades financeiras, e o editor imaginou pela carta do português, que Fernando Pessoa pudesse vir a patrocinar os volumes seguintes da obra. Crowley impressionou-se com a proeza do astrólogo e logo respondeu a carta. Assim os dois ocultistas passaram a trocar correspondências e tornaram-se íntimos.

Fernando Pessoa não estava de todo inocente e isento de interesses na relação. Pretendia publicar, na Inglaterra, um livro seu de poesias, já concluído. Em projeto, um romance policial – nunca levado adiante –, para o qual chegou a acertar, com Crowley, o prefácio. Queria também, abertas as portas, traduzir, organizar e publicar no exterior obras de autores portugueses. Faltava a editora, e o português pensou que o inglês, como padrinho junto à Mandrake, pudesse viabilizar as publicações.

Essas ideias foram tomando corpo nas cartas trocadas entre eles ao longo daqueles meses. O inglês revelou que precisava de descanso, longe dos holofotes, que o ar puro do Estoril faria bem à sua saúde, e logo nas primeiras correspondências manifestou o interesse de vir a Portugal. Mesmo incrédulo, Pessoa incentivou a viagem.

Surpresa maior foi a presença da acompanhante. Dela, o inglês não havia falado nas cartas. Mais liberal no espírito que na carne, o português projetou na atriz exuberante e moderna a representação do que ainda não teria conhecido: o sexo. E o poeta pôs-se a sonhar.

A estada em Lisboa foi breve, apenas uma noite. Bastou um passeio pela Rua Augusta para desistirem da cidade. O figurino e os modos do casal escandalizaram os portugueses. Partiram para o Estoril na manhã seguinte. Lá desfrutariam os dias quentes do resto do verão com mais privacidade. Fernando Pessoa acompanhou os turistas; estava fascinado pela Mulher Escarlate. Há relato a afirmar que o astrólogo português teria visto uma sessão de magia sexual entre o casal, ou participado dela. Não sei se é verdade. Inegável foi a fascinação do poeta pela menina. Para ela escreveu o seu poema mais erótico de sempre:

Dá a surpresa de ser
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado|
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Por declarações do próprio Fernando Pessoa, consta que o poeta esteve duas ou três vezes com o casal no Hotel Paris, no Estoril, e, só mais tarde, veio a saber que, no dia 16 de setembro, após violentíssimo ataque histérico da namorada, os hóspedes foram expulsos. Há outra versão, senão contraditória, complementar a essa: o despejo deu-se mais pela falta de pagamento do que pelo comportamento escandaloso dos estrangeiros. Sem explicação aparente, ao que ficou registrado, o consulado americano foi chamado para cobrir as despesas que os dois deixaram. Vai saber…

Dois dias depois, já hospedado no Hotel Miramar, também no Estoril, o inglês escreve para o português contando da crise histérica, do despejo e do desaparecimento da namorada, na manhã do dia 17, deixando apenas duas linhas a lápis dizendo que voltava em breve.

Nesse mesmo dia, Crowley hospeda-se no Hotel de L’Europe, em Lisboa, e vai, visivelmente transtornado com o desaparecimento da namorada, ao encontro do amigo. Aflito, Fernando Pessoa procura o segundo comandante da Polícia de Segurança, amigo seu, e pede ajuda.

Crowley permaneceu em Lisboa entre os dias 18 e 23. Nesse período, os amigos encontraram-se com frequência. Segundo narrou à polícia Fernando Pessoa, no dia 23 disse-me [Crowley], que ia para Sintra, e que ali se demoraria alguns dias. Despediu-se de mim às dez horas e meia do dia 23, à porta do Café Arcada, no Terreiro do Paço.

Pelo o mesmo relato, no dia 24 de setembro, fortuitamente, Fernando Pessoa viu o mago – ou seu fantasma, fez questão de frisar – duas vezes. Ambas na companhia de um desconhecido. A última vez em que viu os homens, estavam nas imediações do Cais do Sodré . Depois disso, não tornou a ver o inglês.

Dias depois de noticiado o suicídio do mago, o poeta disse ter sabido por jornais estrangeiros que a acompanhante de Crowley, a menina Jaeger, havia deixado Portugal no dia 20, a bordo do vapor Werra, para a Alemanha, e que viajava com passaporte americano. Também dias depois dos fatos noticiados, a Polícia Internacional revelou que o senhor Aleister Crowley passou pela fronteira de Portugal naquele mesmo dia 23 de setembro em que se despedira do amigo astrólogo, dizendo ir para Sintra.

Uma vez constatado que não houve vítimas nem culpados, sendo o suicídio considerado uma brincadeira de mau gosto praticada por um senhor estrangeiro de má reputação, ficou o dito pelo não dito, e a polícia portuguesa arquivou o processo. Porém, há peças nesse quebra-cabeça que não se encaixam: Hanni Jaeger seria, como dizem, uma espiã a serviço dos Estados Unidos? Crowley sabia disso? O suicídio foi mais uma das frequentes farsas, sem propósito específico senão a controvérsia, simuladas pelo ocultista inglês? Ou a farsa tinha a intenção de afligir a namorada desaparecida? Fernando Pessoa foi cúmplice ou vítima? Seria a farsa uma peça publicitária para o romance policial que os dois amigos tencionavam publicar? Se agiram em conluio, por que os dois nunca mais se falaram, tendo Fernando Pessoa deixado de responder as cartas de Aleister Crowley?

Os mais cínicos descrevem o Mistério da Boca do Inferno como um desencontro esotérico e comercial. O que foi eu não sei. Resta o suspense.

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